De noite, antes de repousar, quando todos foram dormir, faço minha meditação.
Ergo um oratório num canto da casa, ornamento com objetos que lembram as experiências positivas e me ponho em posição de relaxamento.
Inicio pelo exercício da respiração. De olhos fechados procuro sentir o ar que entra e sai dos pulmões, só que, pelas frestas da porta e janelas, o ar que entra traz de longe um cheiro forte de maconha consumida nas esquinas, quintais e mocós da Vila. Se for tempo chuvoso, quando os abatedouros e fabricantes de produtos químicos aproveitam para despejar poluentes no rio, um cheiro horrível surge das águas que corta a região e segue Curitiba adentro.
O segundo passo da minha técnica é, ainda com os olhos fechados, ouvir. Ouvir todos os sons e movimentos de todas as formas de vida. Logo, a mente é assaltada pelos gritos dos bêbados cambaleantes, que xingam a estrada por ela se mover e maldizem os buracos que os derrubam. As freadas de carros, longe às vezes perto. As sirenes de viatura policial. Os estampidos de tiro. Muitos sinais de perseguição e morte de vidas. Preciso driblar a imaginação para ouvir o som dos pingos de chuva que cai na calçada. Apelo às ladainhas, preces, trezenas e mantras, lotadas de artifícios, que me colocam num mundo fantástico, porem melancólico.
Durante o dia, só posso meditar graças aos encantos e desencantos que vejo. Mas o ritual resume-se apenas em ver e contemplar uma mistura de cultura e contracultura.
Em alguns quintais da Avenida Santa Bernadete, comadres e compadres estendidos sobre banquetas, contando casos, histórias antigas e de mão em mão, girando no compasso da história, uma cuia com chimarrão, tal qual uma ladainha, profundamente sagrada.
No final do dia, alguns jovens reúnem-se na esquina da Rua Camilo Castelo Branco, contam aventuras do dia de trabalho, gargalham e lamentam. Lançam a mão num litro plástico de refrigerante e numa lata de leite em pó e iniciam um pagode. Prosseguem até a hora da janta e depois vão embora às suas casas. No fim do outro dia a roda se refaz reiniciando o concerto ao ar livre.
Na periferia resido num cenário que a vida escolheu para o confronto entre o profano e o sarado, entre a lei de Deus e a lei dos homens. Duas leis que parecem nunca ter saído do papel. Às vezes minha meditação indica a periferia como um lugar escolhido pelo homem para difundir o império da morte, sufocando a vida como o espinheiro sufoca a flor.
No domingo à tarde ainda contemplo homens e mulheres, crianças, jovens e anciãos, em torno de uma viola ou um violão, onde tocam e cantam. O som do instrumento de pau e corda, misturado ao canto entoado penetra pela minha pele, mas o lamento da canção, a poesia cantada, a melodia que traz alento e esperança, sufoca a beleza do ritmo e do instrumento.
Todos as noites antes de deitar, medito no sagrado recanto de minha casa. É quando percebo que a vida na periferia caminha na contramão da historia. Todas as noites quando faço minha meditação observo o lado avesso da cidade.